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LILIANA PONCE
( ARGENTINA )
Liliana Angélica Ponce -- Buenos Aires.
Poeta, escritora, ocasionalmente tradutora
Estudiosa da literatura japonesa clássica, e do Budismo.
TEXTOS EM PORTUGUÊS
Tradução: Anibal Cristobo / Carlito Azevedo.
INIMIGO RUMOR – revista de poesia. Número 7 – AGOSTO DEZEMBRO 1999. Editores: Carlito Azevedo, Augusto Massi.
Rio de Janeiro, RJ: Viveiros de Castro Editora, 1999. 108 p.
ISSN 1415-9767. Ex. bibl. de Antonio Miranda
Em lembrança de uma viagem à cidade do México,
desde Acapulco, através do deserto, num dia de
novembro.
1
A um passo do precipício os pés não sentem
a velocidade do veículo que corre
sob o ar de novembro.
As curvas da estrada se abrem de par em par
envoltas no jogo das pedras,
em anéis de pedras e cactos.
Que agora entre na cidade
como se a noite falasse chamando pelo fantasma
e a evidência de que cada geografia inexistente
pudesse fazer-se tão real
como o espaço de uma toalha de mesa.
A fita atada ao cansaço,
ao completo abandono, a persistência.
Mas este é o lugar
e seu que algo ficará
neste nublado ponto de despojos.
Enquanto aguardo a cidade,
sob a sombra de Tenochtitlán,
osso e concha
no limite onde poderia morrer.
2
Quanto faz que parti?
Tomava chá e depois as árvores
começavam a desaparecer,
ao lado de minha janela.
Quanto faz que parti?
A noite também viajava
de um continente a outro,
de um país a outro.
Acode ao dócil, inclina-te,
meu tempo caria a paixão.
O feitiço é um muro flutuante,
separará sempre o vento, o olhos mágico,
separará tua voz, a constelação dos rostos.
Quanto faz que parti
da terra desnuda e sem memória,
da noite túnel cavada?
3
Faz quase um dia, percorria de carro outra
paisagem.
Forasteira em planícies de arenito,
ao longo de rotas infinitas.
O pó cor de amêndoa
se abre às serpentes miméticas, sutis,
que não se podem ver sem prestar-se atenção
ao óbvio.
(É meu desejo entrar no coração do México
já bebi sangue de chili,
e gota a gota o agave
entra em minha língua, se imprime em meu alento.)
Neste nó, minha penetração no segredo:
como o céu comerá o deserto,
e o dissolverá em uma única substância
sem a convulsão do úmido, o árido?
A estação da víbora aguarda nesta areia,
meu sol despojado, sol raio
para um espaço esculpido a fogo.
A luz em anéis cai dourada em suas fauces
e me absorve.
4
A distância se funde aos objetos,
retrocede e avança.
Fogo-fátuo da Rainha de seios desnudos,
em minhas mãos deixa agora um cristal
talhado cuidadosamente à hora sexta,
enquanto o vento percorre curvas quase irreais.
Sem sol não poderei despertar,
sem sol, Rainha, não poderei beijar-te.
5
O terror do deserto me isola.
Quieta, hirta no umbral das montanhas,
um fio de sede se reflete no céu de vidro
convertido em lã, em sopro cálido e seco.
O silêncio não teria elegido entrar no pó
mas agora é a serpente quem está sobre as
pálpebras,
carnívoro reflexo das vísceras,
do fruto viscoso, bulbo,
espírito animal envolto na cor,
e um pouco mais de luz emoldurando o platô.
O terror me isola. Estou em um espelho
e meu corpo pode transformar-se
antes que a navalha corte o raio,
antes eu meu olho se desnude.
6
A cidade se aproxima.
Vou pela estrada como se dormisse
em um relâmpago.
O ardor rói a sede, a fome, a dor.
Um pó suave impregna teu vestido e o cabelo
se torna cinza, cinza de líquen,
de pedra úmida
(ou acaso devo pensar no úmido
para esconder a aridez, ou deslocá-la?)
Durmo em um relâmpago
e sei que esqueço que a morte
como se esquecesse um sonho rápido,
o instante no vértice dos signos.
Ao final da viagem
será preciso tecer no vento.
E sobre este deserto
tudo o que já foi dito se expande,
móvel, contínuo.
*
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Página publicada em novembro de 2023.
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